Benfeitores

A cultura da caridade e da solidariedade da Santa Casa da Misericórdia de Viseu teve como alvo principal, ao longo de cinco séculos, acolher os mais desprotegidos. Foram muitos os benfeitores que fizerem generosa doação de todos ou de parte dos seus bens, para que a Misericórdia socorresse órfãs e pobres, mantidos a seu cuidado. Doaram também valores e géneros muitas vezes destinados a doentes sem recurso, que eram recebidos e tratados no Hospital da Irmandade.

Benfeitores são todos quantos, movidos pelo amor ao próximo, revelam uma superior riqueza de espírito, em sintonia com os princípios norteadores das obras de misericórdia.

A Misericórdia de Viseu tem uma extensa galeria de benfeitores, muitos deles retratados por ilustres pintores, nomeadamente António José Pereira e José de Almeida e Silva.

Conheça a história de alguns desses benfeitores.

D. Eugénia Nunes Viseu, Viscondessa de São Caetano

D. Eugénia Cândida da Silva Mendes Viseu

 

Viscondessa de São Caetano

 

 

Retrato de D. Eugénia Cândida da Silva Mendes Viseu

Óleo sobre tela

76 x 60 cm

Assinado: Almeida e Silva Vizeu,datado: 1911

 

Eugénia Cândida da Silva Mendes Viseu, Viscondessa de S. Caetano, nasceu em Viseu a 8 de Julho de 1847, sendo filha de Maria Cândida da Silva Mendes e de Henrique Nunes Viseu, consorciados em Sintra a 22 de Agosto de 1843, ambos netos de Eugénia Cândida da Silva Mendes que, em 1837, foi agraciada por D. Maria II, com o título de Baronesa da Silva pelos relevantes serviços prestados à causa liberal.

Bisneta da Baronesa da Silva, sua madrinha de baptismo, a Viscondessa de S. Caetano iria ficar orfã de mãe em 1859, sendo educada por seu pai com quem na adolescência e idade adulta viajou muito pela Europa, principalmente por Paris, onde passou parte do seu tempo e também por Lisboa.

Senhora culta e distinta, nunca casou. Teve um irmão, Henrique Nunes Viseu que morreu em 1850, ainda menino.

Com a morte de seu pai a 7 de Janeiro de 1882, herda uma confortável fortuna e instala-se na sua Quinta de S. Caetano, em Ranhados, na altura arredores de Viseu.

É aí que cria um circulo de amigos de espírito aberto, que fomenta serões culturais e dedica-se à filantropia ajudando os mais necessitados, atividade que lhe irá proporcionar o título nobiliárquico de Viscondessa de São Caetano, dado por D. Carlos, pelo Decreto de 20 de Novembro de 1882.

Mas a vida foi-lhe madrasta e uma dolorosa e prolongada doença vem consumi-la e a morte chega às 4 horas da manhã do dia 4 de Junho de 1888, na sua Quinta de S. Caetano. O seu cortejo fúnebre foi acompanhado pela multidão dos pobres que ela socorria. Está sepultada no cemitério da freguesia de Ranhados.

No testamento ditado ao findar dos seus dias, deixa o usufruto de todos os seus bens mobiliários e imobiliários à sua prima, D. Eugénia Viseu da Costa, que tem residência em Lisboa, com a condição de, à sua morte, que ocorreu a 28 de Outubro de 1895, transitarem para a Santa Casa da Misericórdia de Viseu. A Santa Casa herdava boa parte da fortuna na condição de criar um Asilo para albergar inválidos e mendigos, que receberia a designação de Asilo de Mendicidade Viscondessa de S. Caetano, onde funciona atualmente o Lar Viscondessa de S. Caetano.

 

Fachada do Lar Viscondessa de São Caetano

 

A sua morte foi muito sentida, não só por ser uma pessoa de trato muito afável, mas sobretudo pela nobreza dos seus gestos de benemerência.

A Santa Casa da Misericórdia de Viseu considera-a uma das principais benfeitoras e mandou edificar um busto, em bronze, em sua memória, no jardim fronteiro à entrada do Lar, em 1962.

Busto de D. Eugénia Viseu no jardim do Lar Viscondessa de S. Caetano

D. Maria do Céu Mendes

Maria do Céu da Silva Mendes

D. Maria do Céu da Silva Mendes(Santa Comba Dão,São João de Areias, 25 de Março de 1847-Viseu, Rua João Mendes, 15 de Abril de 1933) ilustríssima senhora de uma das mais distintas famílias fidalgas beirãs, foi uma artista e filantropa portuguesa.É considerada a primeira pianista das Beiras e o símbolo de uma mulher emancipada numa época especialmente difícil.

Retrato de época da D. Maria do Céu Mendes 

 

Retrato de D. Maria do Céu Mendes de Luís Calheiros 1991

Óleo sobre tela 180X84cm

MUSEU DA MISERICÓRDIA - VISEU

Família

Filha de João da Silva Mendes de sua mulher e prima D. Eugénia da Silva Mendes,12era ainda tia de D. Eugénia de Loureiro Queirós Couto Leitão e prima em segundo grau do marido desta,José de Mascarenhas Relvas, individualidade de reconhecido valor da história de Portugal como republicano, ministro e diplomata, bem como grande proprietário vitivinicultor e coleccionador de arte, da qual se destaca a sua residência Casa Museu dos Patudos em Alpiarça. José de Mascarenhas Relvas e sua família, foram muitas vezes recebidos na sua casa, aquando das suas muitas estadas na cidade de Viseu.

Biografia

Seguidora de uma linha liberal, típica dos Silva Mendes, apresentava a imagem de uma mulher emancipada em contraste com o conservadorismo da sua época, em especial no interior de Portugal. Foi artista distintíssima,pianista de excelência com algumas presenças em São João do Estoril e ainda grandebenemérita da cidade de Viseu. Para além de São João do Estoril, eram conhecidas as suas deslocações à sua terra natal de São João das Areias, bem como a Condeixa, à casa da sua prima e mãe de José Relvas D. Margarida Amália Mendes de Azevedo Relvas e à Casa dos Patudos em Alpiarça. Faleceu solteira, cerca de 20 dias depois de completar 86 anos, na companhia de sua fiel governanta, Maria da Glória Motta, afilhada dos Barões de Prime e que a acompanhou durante toda a sua vida, bem como do seu feitor, José Alves Trindade.3

Sem descendência directa legou os seus bens a algumas das casas de caridade de Viseu como a Santa Casa da Misericórdia e o Asilo de Santo António, deixando ainda consideráveis somas de dinheiro para os pobres de Viseu e funcionários da sua casa, que permaneceram nela após a sua morte em 1933, em especial o último deles (a sua fiel governanta) também aí vindo a falecer a 5 de Setembro de 1946.

Desses bens constavam principalmente o chamado Palacete Silva Mendes mandado construir por seu tio Francisco da Silva Mendes, em frente ao Jardim das Mães, junto aos Paços do Concelho, actual sede da Santa Casa da Misericórdia nessa cidade, a Casa da Regueira, residência habitual de D. Maria do Céu que se situava na Rua João Mendes junto ao Parque do Fontelo em Viseu e que fora dos Barões de Mossâmedes, bem como ainda a Quinta de Cabanões e a Alagoa.45sup>A Casa da Regueira e a sua quinta hoje não existem, tendo sido construído nesse local, um Bairro que conserva o seu nome, do qual se destaca imortalizado o seu busto, bem como do antigo Quintal, alguns muros, cedros e japoneiras.

 

Busto de D. Maria do Céu Mendes em Viseu no Bairro com o seu nome

 

O seu funeral partiu da Igreja de Nossa Senhora do Carmo em Viseu e o cortejo fúnebre dirigiu-se para o cemitério daquela cidade. Foi, por desejo testamentário, sepultada envergado o hábito de Nossa Senhora do Carmo e o seu féretro aí depositado no jazigo de família.

(Colaboração de Eurico Ribeiro)

Referências

  1. "Nobreza de Portugal e do Brasil", Direcção de Afonso Eduardo Martins Zúquete, Editorial Enciclopédia, 2.ª Edição, Lisboa, 1989, Volume Terceiro, p. 385

  2. "Livro de Oiro da Nobreza", Domingos de Araújo Affonso e Ruy Dique Travassos Valdez, Lisboa: J.A. Telles da Sylva, 2.ª Edição, 1988, Volume Terceiro, p. 341

    1. Testamento de D. Maria do Céu Mendes nos arquivos da Santa casa da Misericórdia de Viseu.

    2. "Nobreza de Portugal e do Brasil", Direcção de Afonso Eduardo Martins Zúquete, Editorial Enciclopédia, 2.ª Edição, Lisboa, 1989, Volume Terceiro, p. 385

    3. "Livro de Oiro da Nobreza", Domingos de Araújo Affonso e Ruy Dique Travassos Valdez, Lisboa: J.A. Telles da Sylva, 2.ª Edição, 1988, Volume Terceiro, p. 341

Francisco Mesquitela

Francisco Cardoso de Almeida Mesquitela

 

 

Retrato de Francisco C. de A. Mesquitela

Óleo sobre tela

Almeida e Silva . Viseu . 1898

Col. Tesouro da Misericórdia

 

Francisco Cardoso de Almeida Mesquitela nasceu na Mesquitela, freguesia do concelho de Mangualde, a 26 de Novembro de 1839. Era filho de António Cardoso e de Maria de Almeida, também naturais da Mesquitela[1]. Residia com sua esposa, D. Maria da Assunção, no prédio que confrontava com a Rua Direita e a Rua D. Duarte, em Viseu, onde estabeleceu negócio próprio.

De passagem por Lisboa, Francisco Mesquitela decidiu lavrar o seu testamento no Hotel Francfort, a 6 de Fevereiro de 1897. Dado não ter descendentes, deixava à sua esposa os móveis de casa, as jóias, as pratas, o dinheiro, as dívidas activas e os papéis de crédito, encarregando-a de entregar mensalmente quantias fixas a irmãos, irmãs, sobrinhos, afilhados, criados e ao seu caixeiro José Marques Canto.

Ao Asilo Visiense de Infância Desvalida legava quinhentos mil réis, sob a condição de uma missa celebrada anualmente no aniversário do seu falecimento. Irmão da Misericórdia desde 1867[2], Francisco de Almeida Mesquitela conhecia sobremaneira o papel ímpar assumido pela Santa Casa no auxílio aos mais desvalidos, por tal, doava também à irmandade cinco contos de réis, cujo rendimento devia ser aplicado no pagamento de uma pensão anual de três mil réis à sua afilhada Maria Adelaide Lacerda e, o restante, repartido pelo Asilo da Mendicidade e sopa económica, distribuída aos pobres nos meses de Inverno[3].

De facto, os pobres constituíram-se como o principal destinatário do discurso caritativo que impregna o registo das suas últimas vontades. Este benfeitor dava ainda por esmola vinte e cinco mil réis ao pároco de Fragosela, freguesia do concelho de Viseu, e igual montante ao da Mesquitela, para que a distribuíssem pelos mais necessitados, em quantias inferiores a mil réis. Determinava também a entrega de quinhentos réis a todos os pobres que, por ocasião do seu falecimento, estivessem encarcerados nas cadeias de Viseu. Afirmamos, portanto, que a pobreza encontrou nas suas acções especial solicitude.

Implicado na causa social, Francisco Mesquitela desempenhou cargos administrativos de relevo afectos aos dois principais estabelecimentos de beneficência pública na cidade. Em 1895, integrou a comissão responsável pela reforma do regulamento interno do Hospital Novo. Por Fevereiro de 1897, enquanto membro da direcção do Asilo de Infância Desvalida, exortou todos os concidadãos a subscreverem donativos em benefício dos melhoramentos daquele estabelecimento de caridade que, à época, acolhia cem crianças pobres. Com as consignações pretendiam construir uma capela, por não caberem já os asilados no pequeno oratório que possue actualmente[4]. Todavia, o ecletismo arquitectónico que reveste o antigo templo do asilo não é hoje suficientemente persuasivo para promover nos contemporâneos o ensejo de lhe conferir o inestimável valor de uso.

Jazigo neogótico de Francisco Mesquitela, no cemitério da cidade

Faleceu aos 57 anos e foi sepultado no jazigo que a família possuía no cemitério da cidade, com a maior modéstia e simplicidade e sem acompanhamento de muzica[5], como, de resto, era seu desígnio. Na sessão de 9 de Agosto de 1897, a Mesa da Misericórdia assentiu num voto de pesar pela perda de tão bondoso, caritativo e benemérito irmão e deliberou mandar celebrar na igreja uma missa para sufrágio da alma deste insigne benfeitor[6].

Vera Magalhães

[1]A.D.V., Óbitos. Duplicados. Viseu Ocidental, cx.31, n.º132.

[2]Eleito irmão de maior condição a 17 de Maio de 1867, ocupando o lugar vago por falecimento de seu tio José Cardoso Mesquita [A.S.C.M.V., Livro para nele se fazerem os termos das entradas

dos Irmãos, 1751-1959, fl.304].

[3]A.D.V., Administração do Concelho. Testamentos cerrados, lv.49, fl.61v-62.

[4]A.S.C.M.V., Documentos avulsos, 1897.

[5]A.D.V., Administração do Concelho. Testamentos cerrados, lv.49, fl.59v.

[6]A.S.C.M.V., Mizericordia de Vizeu. Actas, 1892-1898, fl.207-207v.

Manuel Pais Pereira

Manuel Pais Pereira

Manuel Pais Pereira

Óleo sobre tela

Almeida e Silva/Viseu/1893

Col. Tesouro da Misericórdia

Dentro de uma mundividência oitocentista vincadamente filantrópica, os pobres continuaram a acolher especial solicitude nas acções de homens e mulheres economicamente desafogados. Esta benemerência, abnegada ou caução de um percurso post mortem sem sobressaltos, tinha cumprimento em esmolas e legados, sendo seu ensejo minorar a precariedade de vida de uma larga franja da sociedade.

Nas disposições testamentárias, exaradas a 25 de Setembro de 1881[1], Manuel Pais Pereira contemplou aqueles a quem a pobreza desprovera de tudo, mesmo de alimentação e vestuário condignos. Desvalidos, a mendicidade tornava-se para eles o salvo-conduto. Neste quadro de pauperismo extremo, a sua sobrevivência dependia inteiramente da caridade alheia. Observando tamanhas privações, este benfeitor deixou quatro contos de réis em inscrições da Junta de Crédito Público à Santa Casa, para que o seu rendimento fosse aplicado à sopa económica[2]. Na verdade, enquanto irmão[3] da Misericórdia, Manuel Pais Pereira tinha conhecimento que, por instituição do fundo de dois contos de réis por José Ribeiro de Carvalho e Silva, em Julho do mesmo ano, a irmandade distribuiria uma refeição pelos mais necessitados, nos meses de rigorosa invernia.

Mas a benemerência deste negociante não se esgotou no auxílio aos famintos. Outra obra de misericórdia seria visada no seu testamento – vestir os nus. Com efeito, as três viúvas que assistissem às duas missas anuais para sufrágio da sua alma, celebradas na Igreja da Santa Casa e na Capela de Santa Ana, nas Lájeas de Silgueiros, recebiam de esmola peças de vestuário. Em conformidade com o disposto, ainda em 1901, o abade de Silgueiros apresentava à Mesa três nomes de viúvas que, dada a sua pobreza, encontravam-se nas condições indicadas pelo legatário[4].

Baptizado na Igreja de Santa Maria de Silgueiros a 30 de Maio de 1824, Manuel Pais Pereira era filho de António Pais Pereira e Ana de Jesus[5]. Residia na Praça de Camões, na cidade, com as sobrinhas Cecília e Aurélia. Profissionalmente, começou por ser empregado de António José Ferreira Soares, por alma de quem institui uma missa, tornando-se depois proprietário, numa sociedade com Camilo Augusto da Silva Andrade. A passagem de irmão de menor para maior condição, em 1858, ilustra bem esta ascensão socioprofissional. Faleceu a 25 de Setembro de 1882[6] e foi sepultado no cemitério da cidade com a decência devida (…) e segundo é costume fazer-se ás pessoas de minha qualidade[7].

Gestos de generosidade e nobreza eram invariavelmente reconhecidos num assento de Mesa e, dependendo da expressão da esmola, perpetuados igualmente num retrato colocado na galeria de benfeitores. Ora, o retrato de Manuel Pais Pereira, que compõe presentemente a sala do Tesouro da Misericórdia dedicada aos beneméritos da instituição, foi espontaneamente executado por José de Almeida e Silva, pelo ano de 1883. Como gratificação, a Mesa coeva entregou-lhe vinte e cinco mil réis, para pagamento de material e tintas empregues[8].

Quando o projecto social da sopa económica ocupa a actualidade da Misericórdia de Viseu, sensível, como sempre foi seu apanágio, à pobreza, que se adensa nestes tempos mais difíceis, afectando um número cada vez maior de indivíduos de precários recursos, damos voz à exemplaridade deste acto de benemerência a favor daqueles a quem faltava o pão e o agasalho.

Vera Magalhães

[1]Cfr. A.D.V., Notas de Viseu, lv.31, fl.31-39.

[2]Ibidem, fl.34v.º.

[3]Eleito irmão de menor condição a 27 de Junho de 1851, passando ao lugar de maior a 17 de Agosto de 1858 [A.S.C.M.V., Livro para nelle se fazerem os termos das entradas dos Irmãos,

1751-1959, fl.266].

[4]A.S.C.M.V., Actas da Mesa da Misericordia de Viseu, 1901-1904, n.º514, fl.22.

[5]A.D.V., Baptismos. Silgueiros, cx.27E, n.º29, fl.57.

[6]A.D.V., Óbitos. Viseu Ocidental. Duplicados, cx.31, n.º117, fl.13.

[7]A.D.V., Notas de Viseu, lv.31, fl.31v.º.

[8]A.S.C.M.V., Mizericordia de Vizeu. Actas, 1892-1898, fl.14.

Caetano Moreira Cardoso

Caetano Moreira Cardoso

Retrato de Caetano Moreira Cardoso (c.1880-1890)

António José Pereira

Óleo s/ tela

Tesouro da Misericórdia

 

No século XVIII, quando as correntes iluministas e filantrópicas preconizavam a assunção de uma responsabilidade individual, claramente na esteira da divisa de Anne Turgot ao professar la noble passion d’être utile aux hommes[1], os beneméritos da Misericórdia elegeram o hospital e, por conseguinte, os doentes pobres nele tratados como os seus mais gratos beneficiários. Ora, esta beneficência, imiscuída com a virtude cristã da caridade e incentivada pelas vantagens espirituais passíveis de colher, fomentou, em especial no último quartel da centúria, a vontade agregadora de edificar um novo hospital, capaz de suplantar a exiguidade dos recursos assistenciais disponibilizados pelo Hospital das Chagas, diminuído em comodidades precisas para o bom trato e acomodação dos Doentes[2].

Para a consensual aprovação da obra do hospital setecentista, comummente designado Hospital Novo, concorreu, decerto, a benemerência de Caetano Moreira Cardoso. Professo na Ordem de Cristo[3] e familiar do Tribunal do Santo Ofício[4], este benfeitor deu à Misericórdia um olival sito em S. Martinho, arrabalde da cidade, confrontado com a quinta do Cerrado e pouco distante do velho hospital. Na escritura de doação[5], firmada a 14 de Janeiro de 1787, o benfeitor arrolava as suas motivações: a piedade intrínseca ao bom cristão, conducente ao ensejo de ser amigo dos pobres[6], por um lado, e a ruína que observava no Hospital das Chagas, por outro. Assim, o doador conciliava duas pretensões. Primeiro, a remissão da sua alma e a de seus ascendentes e descendentes de todos os pecados, para que, na presença de Deus, fossem premiados com o reino celestial. A esmola, enquadrada na proliferação de uma pobreza dependente da caridade alheia, transformava-se no salvo-conduto para aceder ao paraíso. A provecta idade do benfeitor, já octogenário, influi neste registo profundamente escatológico. Depois, a construção de um hospital que proporcionasse aos doentes um socorro condigno, condição reconhecidamente inexistente no antigo hospital ameaçado pela ruína, em virtude das intempéries, com consequências agudizadas pela exposição do local onde demorava.

António José Pereira retrata este benfeitor volvido um século após a citada doação. Sentado, elegantemente vestido, Caetano Moreira Cardoso, à guisa de anfitrião, parece convidar-nos a conhecer uma obra patrocinada por tantos dos seus contemporâneos. Entrecortadas pela sua silhueta, erguem-se cenograficamente as fachadas norte e poente do Hospital Novo. Nesta composição pictórica intui-se a vontade de eternizar os laços entre mecenas e edificado, num reconhecimento inteiramente merecido. Afinal, na exemplaridade do seu acto alicerçou-se a empresa do novo edifício e convocou-se a generosidade de outros benfeitores, cujas esmolas se cifraram em estipêndio suficiente para encorajar as sucessivas Mesas a desenvolver com denodo tão ambicioso projecto.

Vera Magalhães

 

[1]TURGOT, Anne Robert Jacques, “Fondation”, Encyclopédie ou Dictionnaire raisonné des sciences, des arts et des métiers, par une société de gens de lettres, vol.VII, p.62.

[2]A.S.C.M.V., Livro dos Acordaons, 1726-1816, fl.237v.º.

[3]Investido com o hábito de Cristo no Mosteiro de Nossa Senhora da Luz, na cidade de Lisboa,

mediante carta passada a 30 de Abril de 1740 [A.N.T.T., Registo Geral de Mercês, D. João V, lv. 31, fl.242].

[4]Ver diligência de habilitação de Caetano Moreira Cardoso no A.N.T.T., Tribunal do Santo Ofício, Conselho Geral,Habilitações, Caetano, mç.2, doc.18. Por carta de 8 de Março de 1729,

Caetano Moreira Cardoso passou a ocupar a função de familiar da Inquisição. Filho de Manuel Moreira e de Micaela Roiz, solteiro, natural e morador na cidade de Viseu,

o requerente, com cerca de vinte e cinco anos,possuía como bens de raiz uma vinha, que comprou por 210$000 réis, ocupava o cargo de escrivão do Auditório Geral do Secular e

tinha besta própria para as diligências do novo ofício [Idem].Aquando da execução do tombo dos baldios da cidade, relativo ao ano de 1724, Caetano Moreira Cardoso era, com efeito,

tabelião do Juízo de Fora do Geral de Viseu [Cfr. B.M.V., Tombo Municipal de Baldios, n.º259, fl.15v.º].

[5]A.D.V., Notas de Viseu, lv. 941/111, fl.104v.º-106.

[6]Idem, fl.105.

D. Bernarda Rita de Almeida Albuquerque e Altro

D. Bernarda Rita de Almeida Albuquerque e Altro

Retrato de D. Bernarda Rita de Almeida Albuquerque e Altro

António José Pereira

Óleo s/ tela 66x52cm

Col. Tesouro da Misericórdia (Foto José Alfredo)

Embora nascidas sob o impulso e protecção da rainha D. Leonor, paradoxalmente as Misericórdias reservaram às mulheres um papel subalterno, fechando-se em absoluto à sua participação[1]e sonegando, por via disso, a sua preponderância na esfera administrativa da irmandade mercê das pias doações indispensáveis à acção assistencial prestada. Com efeito, a presença feminina no seio da irmandade proporcionava-se na medida em que eram esposas de Irmãos e, nessa condição, beneficiavam de alguma atenção, em particular na hora da morte, tendo um enterramento mais condigno, e na doença, recebendo o tratamento numa enfermaria que lhes era exclusivamente dedicada.

Pelas razões expendidas, indagar a situação da mulher no âmbito das Misericórdias à luz do papel desempenhado por benfeitoras que, a título individual ou enquanto casal, legaram os seus bens é notabilizar com justeza essas mulheres, fazendo-as emergir do anonimato e da menoridade a que a natureza selectiva e sexista da irmandade as votou no transcurso do tempo.

D. Bernarda Rita de Almeida Albuquerque e Altro inscreve-se com inegável propriedade na galeria dos benfeitores da Misericórdia viseense, emparceirando-se com notáveis beneméritas que, enviuvando ou na inexistência de descendentes, se desapossavam de património em benefício dos mais pobres. Residente na Quinta da Cruz, no concelho de Tondela, solteira, D. Bernarda doou todos os bens que compunham o chamado vínculo da Casa do Penedo, sob a sua administração, instituído por testamento de Bernardo de Loureiro de Figueiredo Castelo Branco e seu irmão José de Loureiro de Figueiredo e Abreu, a 19 de Agosto de 1767 [2]. A escritura de doação intervivos foi exarada nas notas do tabelião Genésio José de Araújo, a 1 de Janeiro de 1856, na presença do seu procurador, o bacharel Joaquim Rebelo da Serra Chiqueno, e da Mesa da Santa Casa, presidida por Ladislau Pereira Chaves de Sousa Araújo. Nesta medida, a Misericórdia tornava-se sucessora na instituição vincular.

Embora sem aplicação especial, ao legado encontrava-se adscrita a observação de condições, como a reserva do usufruto para si enquanto viva, o respeito integral pelas transacções e contratos firmados por seus irmãos Lourenço Homem e António Xavier, seus antecessores na administração do vínculo, e, por último, a Misericórdia ficava obrigada a ressarcir a outorgante do valor despendido na abolição do vínculo, processo em curso no Juízo de Direito de Viseu[3].

Conhecida a sentença de extinção do vínculo, por requerimento de D. Bernarda Rita, procedeu-se à ratificação da escritura de doação celebrada a 23 de Janeiro de 1857[4]. No presente documento foram arrolados todos os bens que compreendiam o vínculo da Casa do Penedo, sitos na sua generalidade nos limites da cidade de Viseu e respeitantes às quintas dos Neres, dos Mortinheiras e do Pombal, no limite de Ranhados; aos prazos sitos no Pereiro, Ranhados, em Alvelos, Sátão, no Soar de Baixo e na quinta da Ponte de Pau, na cidade de Viseu; e as duas casas em Fonte Arcada, na freguesia de Vil de Souto[5].

O legado logrou do pronto reconhecimento da Mesa da Misericórdia que, na pessoa do provedor, endereçou a D. Bernarda Rita a sua penhorada gratidão, enaltecendo os nobres sentimentos e o generoso coração da benfeitora que não se esqueceu de socorrer com mão larga a aflita humanidade, doando á Santa Caza muitos meios para ella distribuir pelos desvalidos e necessitados de socorro[6]. De facto, a verba produzida com a venda dos bens, cifrada em cerca de catorze contos e trezentos mil réis, foi capitalizada na Capela intitulada D. Bernarda de Altro e na Capela do Asilo de Mendicidade, sendo as quantias injectadas de dez contos e de quatros contos e trezentos mil réis[7], correspondentemente.

in Boletim nº 23

 

[1]No caso da irmandade viseense, a admissão de irmãs regista-se pela primeira vez a 14 de Dezembro de 1900,tendo sido eleitas D. Ana Cândida da Solidão Repolho,

D. Eugénia Augusta da Paixão Repolho, D. Maria Gracinda de Almeida e Sousa, solteiras, naturais da cidade [A.S.C.M.V., Livro de admissão dos irmãos, 1751-1959; A.S.C.M.V.,

Actas da Mesa da Misericórdia de Vizeu, 1898-1901, n.º512 (33), fl.241v.º-242].

[2]A.D.V., Notas de Viseu, lv.1134/11, fl.60v.º-61.

[3]Idem, fl.60v.º; A.S.C.M.V., Livro dos benfeitores da Santa Casa, 1863, n.º276, fl.77v.º.

[4]A.D.V., Notas de Viseu, lv.1134/11, fl.141-142v.º.

[5]Idem, fl.141-141v.º.

[6]A. S. C. M. V., Copiador, 1818-1859, fl.95v.º.

[7]A.S.C.M.V., Actas, 1863-1872, n.º504, fl.60-61v.º.

José Guedes da Silva

José Guedes da Silva

E a Assistência Espiritual aos Doentes

António José Pereira, Retrato de José Guedes da Silva, óleo s/ tela.

Distante da acepção contemporânea que privilegia o diagnóstico e a necessária terapêutica no sentido da cura, num hospital setecentista o cuidado com as almas era ainda tão prevalecente como o cuidado com os corpos e, neste quadro mundividencial, a erradicação da doença equiparava-se à erradicação dos pecados, estado escatológico que possibilitaria um percurso post mortem sem sobressaltos. A reedificação das enfermarias do Hospital das Chagas em meados do século XVIII, a expensas do bispo mecenas D. Júlio Francisco de Oliveira, obedeceu, decerto, a um alinhamento lateral com a Igreja de S. Martinho de modo a promover uma interacção reconfortante do espaço de tratamento com o espaço sagrado. No entanto, prevemos que a nem sempre eficiente articulação com o templo tenha compelido a Misericórdia a colocar nas enfermarias um oratório, a cuja existência se alude no acórdão de provimento do primeiro capelão do hospital, em 1786[1].

Ora, foi justamente este conforto espiritual que ocupou os desígnios do casal benfeitor José Guedes da Silva[2] e D. Antónia Margarida de Oliveira, da cidade de Viseu. Por escritura de contrato firmada a 19 de Janeiro de 1793[3], os beneméritos legavam à Misericórdia a avultada esmola de trinta mil cruzados, em moedas de ouro e prata correntes no reino e em títulos. Como condições, o casal estipulava que o rendimento anual desse valor fosse despendido nas tenças das suas filhas e sobrinhas, religiosas no Mosteiro de S. Bento, na cidade, e de seus sobrinhos também religiosos na Ordem de S. Francisco; na colocação e manutenção do Santíssimo Sacramento na igreja ou no oratório do hospital e na remuneração do respectivo capelão; e, por último, na distribuição de um jantar aos pobres encarcerados nas cadeias de Viseu na primeira sexta-feira da Quaresma. Os sobejos seriam aplicados para alivio regallo commodidade e sustentação dos pobres doentes do hospital desta cidade e comvallesentes delle[4]. Instituiam ainda uma missa quotidiana celebrada na Igreja de S. Bento, logo pela manhã, em hora arbitrada pela abadessa, almejando que Deus lhes conseda e a todos as suas obrigasois auxillios da sua divina grasa, perdão de seus peccados, e a graça de bem morrer[5].

Com efeito, embora o Santíssimo Sacramento tenha sido colocado na Igreja de S. Martinho somente em 1819, após a devida autorização pontíficia[6], a instituição deste bem encapelado apensava como expressa disposição do casal a instalação perpétua do Divino Médico das Almas Nosso Senhor Jesus Cristo, de modo a obstar ao recorrente ministrar do Viático sem prontidão e intempestivamente, falecendo muitos doentes sem, no último artigo das suas vidas, receberem o sacramento da Eucaristia. Os benfeitores deputavam a decência e o asseio do sacrário e altar ao capelão, para cujas despesas foi consignada a quantia de trinta e quatro mil réis[7].

Uma década depois de se tornar Irmão da Misericórdia, em 1867[8], a decorada nobreza de José Guedes da Silva conduziu-se ao lugar de maior condição[9]. Nessa qualidade, o benfeitor conhecia evidentemente a situação dos doentes acolhidos no Hospital das Chagas, tendo a sua benemerência sido, decerto, inspirada no consolo espiritual que pretendia possibilitar aquelles pobrezinhos que reprezentão a pesoa de Jezus Christo que se fes infermo para curar nossas infermidades[10]. Foi este discurso caritativo que, pretensa-mente, António José Pereira procurou fixar e enaltecer no retrato de José Guedes da Silva.

Vera Magalhães

 


[1]A.S.C.M.V., Livro dos Acordaons, 1726-1816, fl.215-216.

[2]Mercador, filho de Manuel Guedes da Silva e de Maria Martins, naturais de Ranhados.

[3]Documento exarado nas notas do tabelião viseense António Correia da Silva e apenso ao pedido de provisão régia [A.D.V., Notas de Viseu, lv. 639/182, fl.78-85v.º; A.N.T.T., Desembargo do Paço,

Repartição da Beira,Viseu, Expedidos, mç. 719, cx. 821]. A instituição de uma capela, com o fundo de trinta mil cruzados a favor do hospital,

foi confirmada e aprovada pela provisão de 13 de Maio de 1794, pois lograva de validade após oconsentimento do único herdeiro do casal, o cónego José de Vasconcelos Bandeira Almeida Guedes

[A.S.C.M.V., Livro dos encargos da Santa Caza com o legado de Jozé Guedes e sua mulher, 1793, n.º 687].

[4]A.D.V., Notas de Viseu, lv. 639/182, fl.80.

[5]Idem, fl.91v.º-92.

[6]A.S.C.M.V., Diario da receita e despesa do Hospital desde 1813 a 1825, n.º3, fl.86-93.

[7]O Capelão devia ainda providenciar outros preparos conducentes ao respeito do Senhor Sacramentado, nomeadamente a píxide, o cofre, o pálio, a capa e o véu de ombros [A.D.V., Notas de Viseu,

lv. 639/182, fl.91v.º-92].

[8]A.S.C.M.V., Livro para nelle se fazerem os termos das entradas dos Irmãos, 1751-1959, fl.88v.º-89.

[9]Idem, fl.128.

[10]A.D.V., Notas de Viseu, lv. 639/182, fl.84.

 

José Ribeiro de Carvalho e Silva

José Ribeiro de Carvalho e Silva

E a Instituição da Sopa Económica

Retrato de José Ribeiro de Carvalho e Silva,

Óleo s/ tela

Tesouro da Misericórdia

Dentro de uma mundividência de caridade e piedade cristãs, alimentar os famintos compunha uma das obras de misericórdia prescrita pelo Catecismo. Por conseguinte, desde tempos fundacionais, a ampla acção beneficente da Misericórdia contemplou o provimento de refeições aos pobres. Presidido por valores como o amor ao próximo e a generosidade abnegada, o lastro assistencial da irmandade incorporou o amparo material e espiritual aos mais desprotegidos pela fortuna, fragilizados pela pobreza endémica, desesperadamente dependentes de gestos altruístas num cenário de pauperismo e abandono.

Consciências mais sensíveis, compadecidas com a subjugação de tantos às arbitrariedades da vida, dispõem dos seus recursos e património para cumprirem os desígnios da partilha. A Misericórdia surgia neste quadro de benemerência como acreditada intermediária, satisfazendo com eficiência e zelo as doações e as esmolas consignadas por particulares. É justamente neste contexto de assunção plena da filantropia propugnada pelo ideário iluminista, e consequente na centúria seguinte, que se enquadra a instituição da sopa económica, comummente designada sopa dos pobres, em 1881, pelo benfeitor José Ribeiro de Carvalho e Silva[1], um viseense emigrado no Brasil que se deixou comover pela muita miséria individual e muitas necessidades sociais[2] auscultadas na cidade natal e que, denodadamente, procurou minorar.

Similarmente a outros portugueses que, seduzidos pelas notícias de enriquecimento em terras de Vera Cruz, atravessaram o Atlântico no decurso de Oitocentos, também José Ribeiro de Carvalho emigrou para o Brasil, em 1842, com apenas dezassete anos, abandonando a função de caixeiro que ocupava no Porto[3]. Volvidas quatro décadas na província de Minas, onde casou e se estabeleceu presumivelmente como comerciante, este benfeitor retorna a Viseu em visita a seu pai entretanto acometido de doença grave, assinalando a sua passagem com meritórias obras de generosidade. Debatendo-se com muita mão pequenina sem o pão de cada dia, muito corpo inutilizado pela doença, muita actividade quebrada pela velhice[4], o insigne viseense encarregava a Santa Casa da Misericórdia de Viseu da distribuição de uma sopa a oitenta pobres, vinte deles envergonhados, durante três meses do ano, para a qual atribuía um fundo cujo rendimento seria aplicado nas despesas com a sopa. Para o efeito, uma comissão afecta à irmandade verificou que as condições do legado de dois contos de réis estipuladas pelo proponente eram aceitáveis e, em Julho desse ano, exortou a Mesa a colaborar no projecto da sopa económica[5]. Tomada uma resolução afirmativa, logo em Outubro, o negociante João Soares Pereira entregava a quantia acordada, comprometendo-se a Misericórdia a distribuir a sopa nos meses de rigorosa invernia, nomeadamente Dezembro, Janeiro e Fevereiro[6].

Ainda por Novembro, o mesmo intermediário entregava cento e vinte mil réis destinados igualmente à sopa económica. A Mesa agradecia penhoradamente por mais esta esmola que vem matar a fome a bastantes infelizes, e que tanto enobrece e exalta os seus nobres sentimentos de caridade[7]. Sensível ao apelo feito pela Mesa nos periódicos locais, a população contribuiu com os seus sobejos de modo tão generoso que foi possível estender a distribuição da sopa pelo mês de Março, período igualmente cumprido nos anos subsequentes.

Caritativo, filantropo e mecenas, José Ribeiro de Carvalho integra a galeria de benfeitores da Misericórdia de Viseu. O seu retrato foi oferecido à irmandade pelo insigne pintor viseense Almeida e Silva, como forma de reconhecimento e perpetuação da memória de tamanha benemerência, sentida pelo próprio artista cuja formação em Belas-Artes no Porto foi subsidiada por José Ribeiro de Carvalho que, em 1882, percepcionava nos seus esboços impressionante vocação para o desenho[8].

Vera Magalhães

 

[1]Natural da Rua Nova, na cidade de Viseu, José Ribeiro de Carvalho nasceu a 11 de Fevereiro de 1824, encontrando-se o registo de baptismo datado de 19 do mesmo mês.

Filho de Manuel Ribeiro de Carvalho,natural da Cunha Alta, concelho de Mangualde, e de Maria José da Graça, do lugar da Corga, freguesia de Pindo,

neto paterno de Manuel Ribeiro de Carvalho e de Angélica Maria, naturais e moradores na Cunha Alta,e materno de António Monteiro da Costa e de Maria Rosa da Graça, moradores na Corga

[A.D.V., Paroquiais. Viseu Ocidental. Baptismos, cx.31, n.º39].

[2]Álbum Viziense, ano 1, n.º3, 1884, p.17.

[3]A.N.B., Movimentação de Portugueses no Brasil 1808-1842, códice 0381, vol.15, fl.37.

[4]Álbum Viziense, ano 1, n.º3, 1884, p.18.

[5]Idem, fl.23v.º.

[6]Idem, fl.36.

[7]A.S.C.M.V., Mizericordia de Vizeu. Actas das Sessoes da Meza, 1881-1887, n.º508, fl.39-39v.º.

[8]CAMPOS, António Xavier de, Registo Bibliografico e Jornalistico Visiense, 1923, fl.223.

João Gomes dos Santos

João Gomes dos Santos

Farmacêutico no Hospital Civil

Retrato de João Gomes dos Santos

António José Pereira

Oleo s/ tela; n/a; n/d

Col. Tesouro da Misericórdia

Encontrando em Ribeiro Sanches o teorizador e pugnador por um programa simultaneamente edificatório e de ensino, os planos reformadores dos hospitais setecentistas pretenderam articular o hospital, o laboratório químico e o dispensatório farmacêutico, descrevendo a evolução ascendente das ciências médicas e farmacêuticas. Neste sentido, a botica integrava as dependências hospitalares, destinando-se ao abastecimento interno e domiciliário e funcionando conexa ao laboratório que lhe servia como espaço complementar.

Em Viseu, em finais da centúria, a Misericórdia patrocinou a construção de um novo hospital, que participou desse processo de uniformização do edifício hospital, em concreto da sua composição espacial e subscrição dos emergentes postulados higieno-sanitários, com os avanços das ciências de saúde. Com efeito, o projecto do Hospital Novo ilustrou justamente um estágio mais desenvolvido da farmácia nacional, composto pelo ensino e literatura farmacêutica e corroborado pelo exercício da prática profissional, como avança João Rui Pita[1], ao contemplar a contiguidade da farmácia e do laboratório no lado norte, abertos a 30 de Junho de 1844[2].

Em Setembro de 1857, confrontado com o despedimento do primeiro director da botica, o provedor Ladislau Pereira Chaves de Sousa Araújo propôs à Mesa o provimento do então subdirector João Gomes dos Santos no lugar de director, invocando como argumentos o bom serviço e qualidades evidenciadas pelo farmacêutico[3], cargo que desempenhou com desvelo até falecer. Filho de Joaquim Gomes Loureiro e de Maria dos Santos, João Gomes dos Santos nasceu em Vila Cova de Sub-Avô, uma pequena aldeia situada nas margens do Alva, no concelho de Arganil, a 11 de Abril de 1830, no seio de uma família modesta[4]. Decerto inspirado pelo exemplo de seu irmão José Joaquim dos Santos, farmacêutico em Cabanas, João Gomes dos Santos dedicou-se à profissão, estabelecendo-se em Canas de Senhorim, onde começou a granjear a reputação de farmacêutico distinto, que culminou na sua admissão na farmácia do hospital civil da Misericórdia de Viseu. Solteiro, vivia sozinho no bairro de S. Martinho[5], nas imediações do hospital. Revelando uma notável aptidão para a química analítica, tornaram-se recomendados alguns dos seus preparados e constatou-se sempre a sua preocupação de verificar pelos preceitos científicos a bondade e a pureza dos medicamentos que entravam no estabelecimento[6].

Mas os laços que aproximavam o farmacêutico da Misericórdia da cidade não se confinavam à questão laboral. De acordo com os testemunhos coetâneos, no desempenho das suas funções, João Gomes dos Santos dedicou-se inteiramente à causa social, o verdadeiro lenitivo de actuação da Santa Casa. A dedicação e o zelo desinteressados que colocou no serviço prestado à Misericórdia, por todos sobejamente conhecidos e apreciados, foram reforçados nas suas últimas disposições. Ora, cerrado a 15 de Fevereiro de 1883, o testamento de João Gomes dos Santos legava um conto de réis à Santa Casa, assim como todos os seus livros de farmácia, química, física e matéria médica, com o encargo de entregar anualmente à sua governante, Balbina dos Anjos, sessenta mil réis[7].

A consternação espraiou-se pela cidade à morte de tão estimado cidadão. Os viseenses tinham aprendido a respeitar e a ter na sua mais alta consideração este homem que sempre lhes serviu de exemplo pela bondade, verticalidade e honradez denotadas na sua postura. Coincidente com a data do seu óbito, o número de Dezembro do Album Viziense fazia eco de um pensamento comum quanto ao carácter de João Gomes dos Santos: Não herdou dos seus ascendentes títulos heráldicos mas sim os d´uma reputação sem macula, com todo a segurança se pode affirmar que esse legado foi religiosamente zelado e accrescentado com novas e inequívocas provas d´austeridade e honradez. Sublinhava-se ainda que, acerca da seriedade dos seus actos, da verdade das suas palavras, da rectidão das suas intenções, nunca, no animo dos que o conhecem, se levantou uma suspeita se quer; confiava-se plenamente nelle.

Como preito de gratidão e de reconhecimento, em sessão extraordinária de 1 Dezembro de 1884, data do falecimento do benemérito, a Mesa lavrou um voto de profundo sentimento pela perda e deliberou enaltecer os seus relevantes serviços e merecimentos dando-lhe honras de irmão no funeral[8]. Fez-lhe também o seu retrato, para que na sala nobre, junto de outros indivíduos igualmente notáveis pela sua generosidade, se afirmassem e perpetuassem esses valores que nos cumpre hoje cultivar: o esforço e o brio profissional, a integridade e a comiseração perante a desgraça alheia.

Vera Magalhães

[1]PITA, João Rui, História da Farmácia, p.179.

[2]A.S.C.M.V., Livro em que se lançam todas as drogas que se compram no Porto, Coimbra e Lisboa, n.º14.

[3]A.S.C.M.V., Sessoens da Meza, 1840-1858, n.º501.

[4]Album Viziense, 1.º anno, n.º8, Vizeu, Dezembro de 1884.

[5]A.D.V. Paroquial. Sé Ocidental, Duplicados. Óbitos, cx.31, n.º119, fl.16v.º.

[6]Album Viziense, 1.º anno, n.º8, Vizeu, Dezembro de 1884.

[7]A.D.V., Administração do Concelho de Viseu. Testamentos cerrados, lv.33, fl.51v.º.

[8].S.C.M.V., Mizericordia. Actas das Sessoes da Meza, 1881-1887, n.º508, fl.160v.º.

D. Belmira Augusta Pereira

Belmira Augusta Pereira Santos

A Colónia Balnear

Retrato de D. Belmira Augusta Pereira Santos

Almeida e Silva, 1920

Óleo sobre tela

Santa Casa da Misericórdia de Viseu

Numa atitude de filantropia tão extemporânea a uma Europa recém-saída da Grande Guerra, António Augusto Pereira Santos, guarda do gabinete de Física e Química e amanuense da secretaria do Liceu de Viseu[1], doou à Santa Casa da Misericórdia a assinalável quantia de mil e quinhentos escudos para a fundação da Colónia Balnear Belmira Augusta Pereira Santos[2]. O legado, que recebera o nome de sua irmã, seria exclusivamente aplicado para tratamento marítimo de alunos que frequentassem as escolas primárias da cidade, com preferência para os discentes órfãos[3] ou com bom aproveitamento e comportamento escolares.

Enquanto não acrescessem à consignação inicial outras ofertas, a Misericórdia devia subsidiar este tratamento nas praias entre Ovar e Valadares a pelo menos uma criança, por um período anual não inferior a 45 dias ou, caso a verba não o permitisse, em anos alternados, sendo o aluno entregue a uma família confiável ou internado num sanatório marítimo. O pio legado logrou sensibilizar outros beneméritos, nomeadamente Firmino Augusto Pereira Santos, director da farmácia do Hospital da Misericórdia e irmão do benfeitor, que obsequiosamente deixou em testamento duzentos mil escudos para fundos da instituição[4]. As novas esmolas permitiram a realização de sucessivas colónias balneares[5]até 1974, ano último de registo da conta corrente dos rendimentos afectos ao legado[6].

Além dos documentos, também a pintura torna presente este gesto de beneficência para com as crianças pobres e necessitadas de cuidados específicos de saúde. O retrato de D. Belmira Augusta, executado pelo insigne pintor local Almeida e Silva e entregue por seu irmão António Augusto à Misericórdia para que figurasse entre os benfeitores da Casa, convoca atitudes e valores que n´A Era do Vazio, como lhe chama Gilles Lipovetsky a propósito do individua-lismo contemporâneo, urge recuperar e enaltecer.

Vera Magalhães

 

[1]A.N.T.T., Registo Geral de Mercês. D. Luís I, livro 54, fl.1.

[2]Após autorização emanada do Ministério do Trabalho por portaria de 28 de Abril de 1920, constante do Diário de Governo,

n.º89, 1.ª série, a escritura deste legado foi exarada nos registos notariais de Carlos Alberto de Moura Maldonado a 11 de Maio de 1920.

[A.D.V., Notas de Viseu, livro 1273/292, fl.2v.º-4v.º].

[3]Destacava-se no documento a orfandade resultante de serviços prestados à Pátria. [Idem, fl.3].

[4]A.S.C.M.V., Livro dos benfeitores da Caza e Hospital, 1864, n.º264, fl.106v.º; A.D.V., Administração do Concelho de Viseu.Testamentos cerrados, livro 104, fl.29v.º-33v.º.

[5]Como a colónia de 1949 na Figueira da Foz, composta por dez crianças do Lactário-creche acompanhadas pela directora do Asilo de Infância Desvalida. [A.S.C.M.V., Misericórdia de Viseu.

Actas das sessões, 1945, n.º4, fl.122].Note-se que, à época, a extensão litorânea demarcada no documento de instituição da colónia não foi contemplada com benefício para aproximidade

da praia da Figueira da Foz.

[6]A.S.C.M.V., Instituição Belmira Augusta Pereira Santos, 1920-1974, s/ n.º inv.

Manuel António da Cruz Miranda e D. Sebastiana da Silva

Manuel António da Cruz Miranda e D. Sebastiana da Silva

No declínio de Setecentos, a caridade, movida por um preceituário cristão assente numa concepção remissiva da esmola, tende a absorver os pressupostos filantrópicos propugnados pelo Iluminismo, adquirindo, por via disso, uma natureza mais humanista, orientada pelo ensejo de servir o próximo. Sem negligenciar os proveitos espirituais passíveis de colher, até porque, recorrentemente, prevalecem nos gestos de partilha, os benfeitores cuidam em prover aos mais pobres parte do seu sustento, sensíveis que são à sua necessidade. Assim, a comunhão entre a caridade e a filantropia, expressas em benemerência, enquadra o recrudescimento de legados e doações entregues à Misericórdia de Viseu na centúria de Oitocentos, também estimulado pelas realizações assistenciais da irmandade.

Contemporâneos desta nova composição de caridade, imbricada com um sentido de abnegação e generosidade, Manuel António da Cruz Miranda e D. Sebastiana Maria Inácia da Silva, casal morador na cidade, concretizam as preocupações latentes com o miserabilismo de quem vivia abandonado à sua sorte e, por tal, sobremaneira dependente e vulnerável. Por escritura de doação lavrada em Dezembro de 1796, Manuel António da Cruz Miranda e esposa deixaram de esmola à Misericórdia dois contos e quatrocentos mil réis, valor encapelado, colocado a juro, para que com o respectivo remanescente se sustentassem presos e doentes pobres[1], estes últimos beneficiários preferentes de esmolas e legados.

À doação o casal vinculava encargos, quer temporários, respeitantes à pensão vitalícia de cem mil réis a que se obrigava a Misericórdia, quer perpétuos, relacionados com o sufrágio de suas almas e de seus ascendentes, estipulando-se, para tal, a celebração de quatro missas anuais pelo aniversário dos outorgantes e de Manuel da Silva Cardoso e Josefa Maria, pais de D. Sebastiana Maria Inácia da Silva. Suplementava estas disposições a condição de, anualmente, a Santa Casa colocar a juro a parcela de vinte e cinco mil réis, para acréscimo do capital[2

Empenhados em desagravar as condições de subsistência de doentes e presos, o casal benfeitor vai replicar nos anos subsequentes as esmolas em favor daqueles, por mediação da Misericórdia, contribuindo para a consolidação e ampliação da acção assistencial promovida pela irmandade junto dos mais desvalidos[3]. Assim, em Março de 1812, em sua representação, o cónego José António de Almeida Ribeiro entrega à Mesa quinhentos mil réis, reservando-se dezasseis mil réis para sustento dos dadores, caso necessitassem, esmola que se repete, com valor diferenciado, nos anos de 1813 e 1821, com a mesma aplicação[4]. Ainda em 1829, no ocaso da sua vida, Manuel António da Cruz Miranda suporta o custo da feitura de atoalhados e camisas para o Hospital das Chagas[5].

Viúva e sem descendentes, D. Sebastiana Maria Inácia da Silva, por escritura de doação e contrato firmada a 15 de Novembro de 1829, deixa de esmola à Misericórdia a generosa quantia de três contos de réis, em metal e títulos, em benefício dos encarcerados e doentes pobres, ao abrigo da pura caridade e desejo que sempre teve de socorrer as necessidades públicas e particulares com parte dos bens que Deus Nosso Senhor tão liberalmente lhe tem repartido[6]. Volvidos dois anos, a Mesa presidida por Manuel Álvares dos Reis acorda a aceitação da esmola de dois contos de réis oferecida novamente pela viúva, livre de encargos perpétuos respeitantes ao seu encapelamento[7].

Décadas depois, a Misericórdia incumbe António José Pereira da execução do retrato do benfeitor Manuel António da Cruz Miranda, interpretado e reinventado ainda ao sabor de Setecentos. A sua presença na galeria de beneméritos da Santa Casa cumpre o propósito de assinalar o seu valioso contributo no âmbito da assistência à pobreza local através dos réditos legados, invocando, paralelamente, a generosidade de sua esposa que, já viúva, continua a encontrar na irmandade a depositária de parte dos seus proventos, para socorro de quem precisa.

Vera Magalhães

 

[1]A.D.V., Notas de Viseu, lv.947/118, fl.143-144; A.S.C.M.V., Livro dos benfeitores da Santa Casa, 1863, n.º276, fl.11v.º.

[2]Idem, fl.143v.º; Idem.

[3]Sublinhe-se que, na qualidade de irmão da Misericórdia eleito em Dezembro de 1792, com exercício da escrivania na Mesa de 1802-1803, Manuel António da Cruz Miranda conhecia em

profundidadeas dificuldades de sobrevivência de uma larga franja da sociedade local, fustigada pela doença, precariedade, privação [A.S.C.M.V., Livro de admissão de Irmãos, 1751-1959, fl.167v.º;

A.S.C.M.V., Livro da Ileisam de Provedor e mais Irmaos da Meza e Eleitores, 1760-1829, fl.106-106v.º]. A mesma atenção quando se manifestou desfavorável à alienação ou aforamento de qualquer

parte da Quinta do Carregal, argumentando com o prejuízo que tal decisão provocaria aos caseiros da quinta, reduzidos que ficariam os montados e logradouros que serviam de pasto para o gado

e donde se extraía o estrume para as culturas [A.S.C.M.V., Livro de Acórdãos, 1816-1894, fl.29v.º-30].

[4]A.S.C.M.V., Livro dos benfeitores da Santa Casa, 1863, n.º276, fl.11v.º; A.S.C.M.V., Capella de Miranda.

[5]A.S.C.M.V., Livro da receita e despeza da S.ta Caza da Mizericordia desta cid.e, 1822-1839, fl.121v.º.

[6]A.S.C.M.V., Doação de Sebastiana Maria Ignacia da Silva viúva de Manoel Antonio da Cruz Miranda desta cidade, n.º275.

[7]A.S.C.M.V., Livro de Acórdãos, 1816-1894, fl.55-56.

Casal Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida

Casal Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida

E o Vínculo do Hospital das Chagas

Retrato de Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida

António José Pereira (c. 1880-1890)

Óleo s/ tela

Col. Tesouro da Misericórdia

A doença era a face mais viva das privações que afligiam os pobres, ordinariamente dependentes da caridade do próximo que, de modo abnegado, lhes deixava alimento, esmola e agasalho, na cristã observância das obras de misericórdia. Na longínqua centúria de Quinhentos, Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida, casal fidalgo detentor de vasta fazenda nas cercanias da cidade, foram intérpretes de uma franja desapossada, incapaz de suportar os custos de uma assistência domiciliária sobrevinda a doença.

Assim, para acolher e tratar os doentes pobres, Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida fundaram um hospital, nas ilhargas da Igreja de S. Martinho. Por escritura firmada em cartório a 19 de Julho de 1565, o casal instituiu o vínculo do hospital administrado dentro da família Bravo. A gestão da casa do hospital era secundada pela Misericórdia, competindo-lhe a admissão dos enfermos, o seu sustento e cura[1]. Contudo, a falta de descendentes e o zelo da Santa Casa no tratamento dos doentes conduziram o hospital à administração exclusiva da irmandade, a expensas da qual (ou por seu intermédio) se tinham realizado algumas campanhas de remodelação e ampliação do edifício.

Jerónimo Bravo e Isabel de Almeida participaram da criptohistória da assistência hospitalar em Viseu mediante a instituição do primeiro hospital, denominado Hospital das Chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, por analogia ao padecimento infligido a quem dele se socorria. O Hospital das Chagas, sito no termo de S. Martinho, sobranceiro à cidade, inscrevia uma amálgama de funções, equiparando-se, portanto, a uma albergaria, arquitectonicamente inexpressivo e de arraigada feição religiosa, conquanto admitisse apenas doentes de condição humilde e não já passageiros, peregrinos e pobres cansados da viagem e necessitados de pão, de água e de tecto, a quem se reservavam antes as albergarias da Regueira e do Arco, reminiscências claras da assistência praticada em tempos medievos.

A configuração espacial do edificio que servia de hospital, resultante de uma morada de casas legada pelo casal, comprova essa ausência de atribuições impre-teríveis numa unidade hospitalar como as que se fundam na Renascença e de que o Hospital Real de Todos-os-Santos, em Lisboa, é cabal paradigma. No Hospital das Chagas, uma antecâmara, onde se encontrava o hospitaleiro, precedia a sala onde se dispunham os nove leitos, para homens e mulheres, indistintamente[2]. Nas proximidades ficava a Igreja de S. Martinho que descansava os doentes quanto aos cuidados com a alma de que careciam no obediente cumprimento dos preceitos cristãos, assegurando-lhes, no derradeiro artigo de vida, a administração dos últimos Sacramentos. Esta morfo-logia evoca inequivocamente as plantas basilicais tomadas pelos hospitais medievais: uma sala para acomodar os doentes servida de oratório, ou, sempre que possível, contígua a uma capela, possibilitando, assim, aos internados assistirem aos ofícios.

Evocando a acção benemérita do casal, figura na lápide que sobrepuja a porta do antigo Hospital das Chagas a seguinte inscrição: “NESTE OSPITAL DAS CHAGAS IAZ IMO BRAVO CIDADAO DESTA CIDADE E SUA MOLHER ISABEL DALMDA O QUAL MANDOU FAZER E A ELE DOTOU E AVINCULOU SUA FAZEDA PA A FABRICA DELE FALECEO NO ANO D 1576”. A sua benemerência foi ainda exaltada no retrato a óleo de António José Pereira que, ao sabor de Oitocentos, pintou o casal mecenas, detrás do qual se ergue, anacronicamente, o Hospital das Chagas, tal como se apresentava nos finais do século XIX, depois de sujeito a sucessivas alterações compositivas e organizacionais.

Vera Magalhães

 

[1]A.N.T.T., Ministério do Reino, 3.ª Direcção, 2.ª Repartição, proc. n.º271, lv. 11, mç 3389.

[2]Idem.

Padre José Dias

Padre José Dias

Retrato do Padre José Dias (1910)

José de Almeida e Silva

Óleo s/ tela

Tesouro da Misericórdia

Embora de aquiescência régia, a fundação e o desenvolvimento das Misericórdias ensaiaram um relacionamento estreito entre o corpo dirigente da irmandade e as esferas eclesiásticas. De facto, diversos são os exemplos passíveis de atestar essa convergência de desígnios, dando conta de uma ingerência consentida da clerezia nos assuntos administrativos da Santa Casa. No evolver dos séculos, a Misericórdia de Viseu sempre logrou recrutar Irmãos providos de certa dignidade eclesiástica que viam nessa pertença a assunção de maior relevo no campo da assistência local, cuja feição aglutinadora potenciava o próprio capital social dos Irmãos.

É justamente à luz desta cumplicidade entre a Irmandade e a autoridade eclesiástica que importa encarar o papel preponderante desempenhado pelo padre José Dias, pese embora este benfeitor não conste nos termos de inscrição dos Irmãos. Tratava-se antes de um assalariado[1] no seio da Irmandade, ocupando o cargo de director, amanuense[2] e capelão do hospital da Misericórdia desde Novembro de 1873[3]. Importa notar que a acumulação das funções foi fixada na resolução de Mesa e Junta de 15 de Setembro de 1855, que, para melhor andamento e regularidade do serviço do Hospital[4], decidiram criar o lugar de director a quem incumbia a escrituração do hospital, a fiscalização do desempenho dos empregados e criados, bem como a direcção de todo o serviço interno, relatando à Mesa tudo o que fosse ocorrendo, no sentido desta tomar as ajustadas providências. Para uma eficiente economia, o director devia ser eclesiástico a fim de reunir as atribuições atrás mencionadas com as de capelão e confessor, competindo-lhe deste modo o serviço religioso do hospital[5]. Acrescia a estas atribuições a de roupeiro, tal como determinava o Regulamento de 1861[6].

O desvelo que sempre emprestou à assistência hospitalar, cuidando do conforto físico e espiritual dos enfermos ali acolhidos, culminou na doação testamentária feita à Misericórdia, legando-lhe a casa e quintal, na Rua João de Barros, freguesia ocidental, para tratamento dos doentes pobres do hospital, e todo o remanescente, instituindo a irmandade como a sua única e universal herdeira[7]. Sendo o provedor da Santa Casa designado seu testamenteiro, logo que foi do conhecimento da Mesa o óbito do benemérito, Maximiano Pereira da Fonseca Aragão, coadjuvado pelos secretários da Casa, arrolou todos os bens do padre José Dias, entre os quais alguns réis, mobiliário e modesta prata[8].

A 16 de Março de 1910, a mesa da Misericórdia reagia com consternação à notícia da morte daquele que consagrou a sua vida ao hospital, deliberando por unanimidade lançar neste acto um voto de profundo sentimento pelo falecimento do exemplar, virtuoso e benemérito amanuense e capelão ajudante do Hospital desta Santa Casa, o Reverendo Cónego José Dias que por muitos anos foi empregado deste Hospital, tendo sempre exercido o seu cargo com o máximo zelo, assiduidade e dedicação[9]. A abnegação e a nobreza de um homem simples ficaram expressas no retrato a óleo que integra presentemente a galeria de benfeitores do Tesouro da Misericórdia.  

Vera Magalhães

[1]De facto, desde o ano económico 1881-1882 o padre José Dias auferia uma gratificação de cento e cinquenta e oito mil réis, aumentada em dezasseis mil réis em Junho de 1884

[A.S.C.M.V., Acórdãos, 1816-1894, fl.285].

[2]Em conformidade com o Regulamento da Secretaria de 1899, os amanuenses estavam subordinados ao secretário, auxiliando-o nos serviços a seu cargo

[Cfr. Regulamento da Secretaria da Santa Casa da Misericórdia de Vizeu, Vizeu: Typographia da Folha, 1899, p.13].

[3]A.S.C.M.V., Assento de entrada e sahida dos creados, 1862, n.º30, fl.16v.º.

[4]A.S.C.M.V., Acórdãos, 1816-1894, fl.107.

[5]Idem.

[6]Datado de 1861, o primeiro regulamento conhecido do hospital veiculava como diretor do hospital o capelão, estatuindo assim uma conduta administrativa já verificada

[Cfr. A.S.C.M.V., Regulamento do Hospital da Mizericórdia de Vizeu, 1861].

[7]Testamento cerrado a 11 de Março de 1910. Vide A.D.V., Administração do Concelho de Viseu. Testamentos cerrados, lv.69, fl.64-68.

[8]A.S.C.M.V., Actas da Santa Casa da Misericordia de Vizeu, 1908-1911, n.º36, fl.113v.º-114. De referir que o mobiliário, os valores e o dinheiro produziram 120$510 réis,

a casa e quintal foram arrematados pela quantia de 885$500 réis. As despesas com o legado, nomeadamente o funeral e encomendação de alma,

importaram em 71$255 réis [Cfr. A.S.C.M.V., Bemfeitores da Misericordia de Vizeu que teem retrato na galeria, n.º227, fl.21].

[9]A.S.C.M.V., Actas da Santa Casa da Misericordia de Vizeu, 1908-1911, n.º36, fl.113v.º-114.

Bispo D. Dinis de Melo e Castro

Bispo D. Dinis de Melo e Castro

E a Quinta de Vila Nova dos Arciprestes

Retrato de D. Dinis de Melo e Castro (1868)

António José Pereira

Óleo s/ tela

Tesouro da Misericórdia

Filho de Francisco de Melo e Castro, alcaide-mor de Outeiro e comendador de Montalegre, e de Brites Nobre[1], D. Dinis de Melo e Castro foi sucessivamente bispo de Leiria, de Viseu e da Guarda, falecendo sem tomar posse desta última diocese. Contrariamente à generalidade dos seus pares, não se lhe conheceu conezia ou benefícios eclesiásticos. De facto, todo o seu precedente percurso desenrolou-se apartado de instituições com vínculos à Igreja. Até 1626, ano da sua eleição como bispo leiriense, D. Dinis desempenhou funções de Desembargador da Relação do Porto e do Paço[2]. Enquadrado no perfil episcopal, concebido no Concílio tridentino, D. Dinis incorporou em plenitude o arquétipo do prelado pastor: visitador, diligente, zeloso na defesa da justiça, magnânimo no combate ao pecado, caritativo e afável no trato[3].

Quando assumiu o episcopado em 1636, este prelado preocupou-se em conhecer as necessidades do seu bispado, constatando então que as carências auscultadas eram inteiramente proporcionais à situação da Misericórdia que, no seu parecer, he muyto pobre, e tem grandes obrigações[4]. Então, para fazer face à precariedade das populações, D. Dinis legou à irmandade viseense avultada esmola em benefício dos doentes pobres, dos presos, das mulheres de menor condição e das crianças a quem faltava o leite, classificados por si como os mais desamparados da diocese.

Com efeito, por provisão datada de 5 de Julho de 1638, D. Dinis de Melo e Castro abonou a Misericórdia de Viseu com um conto de réis, a empregar em rendas, e distribuído pelas pessoas pobres, que por sua qualidade, ou por outros justos respeitos (…) não costumão curarse no Hospital, e se curão em suas cazas[5]. Em novo documento exarado nos Paços Pontificais da Quinta e Couto do Fontelo, a 26 de Janeiro de 1639, recorrendo a um discurso imbuído de emoção e clarividência, D. Dinis discorre, com alguma detença, sobre a situação das mulheres que trabalhão nas lavouras, e no mais serviço, quasy tanto como os homens, sustentadas diariamente com uma dieta frugal à base de castanhas, pão de milho e caldo de ervas. A árdua jornada e o ordinário mantimento resultavam na secagem precoce do leite materno, o que he causa de perecerem muytas crianças com grande desemparo[6].

Tendo verificado que as Misericórdias da sua diocese não detinham rendimentos suficientes para, de modo eficaz, responder a tantas solicitações, o prelado procurou minorar as dificuldades auscultadas comprando a Quinta de Vila Nova dos Arciprestes, sita no concelho do Sátão, e mais casais no termo de Viseu e nos concelhos circunvizinhos de Penalva, Ladário e Sátão. O prazo pertencia a D. Martim Afonso de Melo e a D. Joana Freire de Andrade, moradores na quinta de Crestelo, Povolide. Por morte da esposa, em 1627[7], a quinta coube em partilhas a D. Martim e a D. Maria de Melo, filha segunda do casal. Depois de obtida licença para vender a parte de D. Maria, sem embargo por ser menor de 25 anos, a quinta dos Arciprestes foi vendida ao bispo D. Dinis pelo preço de sete mil cruzados. O Provedor Henrique de Lemos de Campos e mais Irmãos aceitaram a provisão de doação desta fazenda, sujeitando-se às obrigações nela declaradas. Na verdade, a irmandade foi onerada com o encargo de entregar anualmente quinze mil réis às Misericórdias de Pinhel, Trancoso, Vouzela, e vinte cruzados às congéneres de Aguiar da Beira, Penalva do Castelo e Fornos de Algodres[8].

D. Dinis de Melo e Castro foi, neste quadro, um notável benfeitor da Santa Casa, responsável pela viragem nos assuntos patrimoniais da irmandade, pois, ao dotá-la com a primeira fazenda, proporcionou um maior desafogo material que, inquestionavelmente, se traduziu no cabal auxílio aos mais desvalidos.

Vera Magalhães

 

[1]SOUSA, P.e Leonardo de, Memorias Historicas e Chronologicas dos Bispos de Vizeu, t. III, lv.I, cap.VIII, 1767, fl.57-57v.º.

[2]GAYO, Felgueiras, Nobiliario de Familias de Portugal, t.XI, Braga: Oficinas Gráficas de “Pax”, 1939, p.39.

[3]PAIVA, José Pedro, Os Bispos de Portugal e do Império 1495-1777, Coimbra: Imprensa da Universidade, 2006, p.139.

[4]A.S.C.M.V., Instituição do Snr. D. Diniz, livros varia/1, fl.17-18v.º.

[5]Idem.

[6]Idem, fl.25.

[7]A.D.V., Paroquiais. Óbitos. Povolide, cx.18, n.º4, fl.14v.º.

[8]A.S.C.M.V., Instituição do Snr. D. Diniz, livros varia/1, fl.25-27vº.

Bispo D. Gaudêncio José Pereira

Bispo D. Gaudêncio José Pereira

Retrato de D. Gaudêncio José Pereira

José de Almeida e Silva (1911)

Óleo sobre tela

75 x 59cm

Assinado: Almeida e Silva Vizeu, datado: 911

Filho de José de Almeida e de Bernarda Bernardina, D. Gaudêncio José Pereira nasceu a 6 de Outubro de 1830 no lugar de S. Cristóvão, freguesia de S. Pedro de France[1]. Aos 56 anos, recebera o título eclesiástico de arcebispo de Mitilene, designação que a Santa Sé oferecia aos vigários-gerais do Patriarcado de Lisboa, na sequência do reatamento das relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé em 1842, cortadas desde 1833 em resultado da radical oposição entre as concepções teocráticas do poder difundidas por Roma e a filosofia social e política que fundamentava o liberalismo[2]. Em curto tempo, a 1 de Junho de 1888, D. Gaudêncio José Pereira foi nomeado arcebispo da diocese de Portalegre[3]. Quando faleceu, a 2 de Novembro de 1908, no paço episcopal da cidade de Portalegre, D. Gaudêncio havia entretanto assumido aquele episcopado[4].

Não obstante ter cumprido funções eclesiásticas em terra distante do seu berço, o bispo de Portalegre não ignorou as carências das famílias do seu concelho, mostrando-se, pelo contrário, sensível às necessidades do outro, pobre, desamparado, doente, esquecido, tantas vezes, por quem lhe devia dar a mão. Depositando na Misericórdia viseense confiada tarefa de acudir à desgraça alheia, por escritura de doação firmada a 16 de Novembro de 1894, D. Gaudêncio José Pereira deixou de esmola um conto de réis[5]. Como procurador do bispo, o reverendo Doutor Francisco Pereira Soromenho, professor do Seminário Episcopal, entregou em moedas a quantia determinada e acordou as condições da doação com a Mesa, presidida por Camilo Alberto de Andrade, celebradas nestes termos: a Misericórdia obrigava-se a atribuir ao doador, enquanto vivo fosse, o valor anual de trinta mil réis; após o seu falecimento, pelo aniversário do seu óbito, a Casa mandaria rezar uma missa por sua alma no altar de Nossa Senhora das Neves da igreja de S. Pedro de France. Ao pároco celebrante a Misericórdia daria a esmola de cinco mil e quinhentos réis, ao acólito mil réis e ao responsável pelo sinal dos sinos da torre da igreja paroquial quinhentos réis. Acrescia aos encargos descritos a obrigação de o pároco e respectivo acólito rezarem um responso, com água benta e incenso, junto do túmulo do doador. Aos pobres, em número de vinte e preferentemente do lugar de S. Cristóvão, que tivessem assistido aos actos religiosos seria distribuída a quantia de dez mil réis.

Logrando de inteira anuência dos Irmãos presentes, a doação foi autorizada mediante alvará do Governador Civil, apresentado e arquivado em cartório público para transcrição nos traslados da escritura. Em conformidade com o estabelecido, os dois outorgantes fixaram o dia 16 de Novembro de cada ano como data de pagamento da pensão do doador, a principiar no ano de 1895[6].

Como penhor de gratidão, Almeida e Silva executou o seu retrato em 1911, a pedido da Misericórdia que, embora administrada por um novo corpo dirigente, não esquecera o gesto generoso do prelado em benefício de todos quantos a Casa amparava e para quem voltava a sua acção eminentemente assistencial.

Vera Magalhães

 

[1]A.D.V., Paroquial. Baptismos. S. Pedro de France, lv.25B – n.º8, fl.334-334v.º.

[2]NETO, Vítor, “O Estado e a Igreja”, História de Portugal (dir. MATTOSO, José), vol.V, Lisboa: Círculo de Leitores, 1993, p.270.

[3]www.catholic-hierarchy.org/bishop

[4]A.S.C.M.V., Livro dos benfeitores da Santa Casa, 1863, n.º276, fl.91.

[5]A.D.V., Notas de Viseu, lv.251/96, fl.73-74v.º.

[6]Idem, fl.74v.º.

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